sábado, 24 de setembro de 2011

O Heroísmo

Discurso aos esposos, 13 de agosto, 1941.
Quantas vezes ouvistes repetir que "a vida do homem sobre a terra é uma luta"! Se a vida do homem sobre a terra é uma luta, porque o homem é composto de espírito e de corpo, existem dois campos de luta e de combate: um de combate corpóreo sobre o terreno material; outro de combate espiritual no íntimo de seu espírito. Todo combate e todo campo têm seus perigos, as suas disputas, as suas virtudes, os seus heróis e atos heróicos, seus heróicos triunfos e coroas.
As lutas corpóreas são abertas e claras; batalhas, vitórias e coroas ocultas, só de Deus conhecidas e por Ele premiadas. A Ele somente são plenamente óbvios os méritos e as disputas que exaltam e elevam sobre os altares os heróis da virtude.
Sobre os campos de batalha, no céu e nos mares, quantos heroísmos resplandecem aquela fortaleza de ânimo que afronta os perigos de morte! Heroísmos manifestos de jovens militares e de intrépidos capitães, de coortes e de legiões, de sacerdotes que no meio do furor das lutas confortam feridos e moribundos, de enfermeiros e de enfermeiras que curam as doenças e as chagas. Pois, se toda guerra, que se alastra entre os povos, faz sofrer e causa horror a todo coração nobre, no qual a caridade de Cristo, que abraça amigos e adversários vive e tudo urge e inflama, não se pode porém negar que tão ferozes e cruéis turbilhões, com as austeras obrigações que impõem aos combatentes e aos não combatentes, suscitem horas e momentos de provas luminosas, nas quais se revelam as grandezas, muitas vezes insuspeitadas e inesperadas, de almas heróicas, sacrificando tudo, até a própria vida, para o cumprimento daqueles deveres, que lhes dita a consciência cristã.
Mas estaria bastante errado quem acreditasse que a grandeza de alma e heroísmos sejam virtudes reservadas, quase como flores extraordinárias, só para os campos cruentos, para os tempos de guerra, de catástrofes, de cruéis perseguições, de bruscas mudanças sociais e políticas. Ao lado destes heroísmos mais visíveis, desta magnanimidade e destes arrojos fúlgidos, surgem e crescem nos recessos dos vales e dos campos, nas estradas e nas sombras das cidades, velados pelo melancólico fluir da vida cotidiana, muitos atos não menos heróicos, brotando secretos competidores dos mais belos fatos propostos à admiração comum.
Não é porventura heróico o homem de negócios, o patrão de uma grande indústria, o qual, vendo-se reduzido aos extremos e quase à ruína, por acontecimentos adversos, imprevistos, enquanto a via fácil de salvação seria para ele recorrer a um dos expedientes que o mundo leviano escusa e absolve, quando leva ao sucesso, mas que a moral cristã não admite, - entra em si mesmo e interrogada a própria consciência, não desobedece à resposta que ela lhe fornece, mas como fiel cristão, rejeita um meio que lese a justiça, e prefere ruína e miséria a uma ofensa de Deus e do próximo?
Não é heróica a jovem pobre, que mal pode dar um pedaço de pão à velha mãe e aos irmãos órfãos com o escasso salário que recebe, mas afasta toda fácil condescendência e guarda energicamente a sua honra e o seu coração, intrépida em rejeitar o favor de um imoral doador de trabalho, desprezando abundantes e mal adquiridos ganhos, que poderiam retirá-la de sua penúria?
Não é heróica a menina, mártir de seu candor, que oferece a Deus, impurpurado pelo próprio sangue, o lírio de sua virginal virtude?
São estes heroísmos de justiça, heroísmo de cristã dignidade feminina, heroísmo digno dos anjos: heroísmos secretos, que sobressaem juntamente com os heroísmos da fé, da confiança em Deus, da paciência, da caridade nos hospitais civis e de guerra, ao longo dos caminhos dos arautos de Cristo nas terras dos infiéis, onde quer que a fortaleza de alma se ajunte ao amor de Deus e do próximo.
Não há de que se surpreender que também na sombra das paredes domésticas se esconda o heroísmo da família, e que a vida dos esposos cristãos tenha, ela também, seus heroísmos escondidos; heroísmos extraordinários em situações duramente trágicas e muitas vezes ignoradas pelo mundo; heroísmos cotidianos na farta sucessão de sacrifícios a cada hora renovada; heroísmos do pai, heroísmos da mãe, heroísmos de ambos juntamente.
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Discurso aos esposos, 2 de agosto, 1941
Como nos primeiros séculos do cristianismo, assim nos tempos modernos, nos países do mundo, onde a perseguição religiosa aqui e ali se enfurece, abertas e sutis, mas não menos duras, os mais humildes fieis podem de um momento para outro encontrar-se diante da dramática necessidade de escolher entre a própria fé, que tem o dever de conservar inata, e a liberdade, os meios para sustentar a vida, a própria vida. Mas também nas épocas normais, nas vicissitudes e nas condições ordinárias da família cristã, sucede de vez em quando que as almas se encontrem bruscamente colocadas na alternativa de violar um imprescindível dever ou de expor-se a sacrifícios e riscos dolorosos e duros, na saúde, nos bens, na posição familiar e social, colocadas portanto na necessidade de ser e demonstrar-se heróicas, se querem permanecer fieis às suas obrigações e permanecer na graça de Deus.
Quando os Nossos predecessores de veneranda memória e particularmente o Sumo Pontífice Pio XI na Carta Encíclica "Casti connubii", chamaram a atenção e recordaram as santas e inamovíveis leis da vida matrimonial, ponderavam e tinham perfeitamente consciência de que em não poucos casos, aos esposos cristãos pede-se um verdadeiro heroísmo para observar inviolavelmente as suas leis. Trata-se de respeitar os fins do matrimônio desejados por Deus; ou de resistir aos incentivos ardentes e lisonjeiros das paixões e de solicitações, que a um coração inquieto insinuam que vá procurar fora o que, na legítima união não encontram ou crêem não ter encontrado tão plenamente como haviam esperado; ou que, para não quebrar ou diminuir o vínculo das almas, e do mútuo amor, sobrevenha a hora de saber perdoar, de esquecer um litígio, uma ofensa, um aborrecimento, talvez grave; quantos dramas íntimos nascem, desenvolvem suas amarguras e peripécias atrás do véu da vida cotidiana! Quantos heróicos sacrifícios escondidos! quantas angústias do espírito para conviver e manter-se cristãmente constante no próprio dever e no próprio cargo!
E esta mesma vida cotidiana, qual força de alma não pede muitas vezes: quando toda manhã se deve voltar aos mesmos trabalhos, talvez rudes e fastidiosos em sua monotonia; quando é melhor suportar com sorriso nos lábios, amavelmente, alegremente os defeitos recíprocos, os jamais vencidos contrastes, as pequenas divergências de gosto, de hábitos, de ideias, que a vida em comum traz, quando, em meio de mínimas dificuldades e incidentes, muitas vezes inevitáveis, não deve perturbar-se e diminuir a calma e o bom-humor; quando, em um encontro frio, é urgente saber calar, parar a tempo o lamento, mudar e adoçar a palavra que, lançada fora, daria desafogo aos nervos irritados, mas difundiria uma nuvem opaca na atmosfera das paredes domésticas! Mil particulares ínfimos, mil fugazes momentos da vida cotidiana, cada qual deles é bem pouca coisa, é quase um nada, mas que a continuidade e o adicionar-se terminam tornando tão pesados, e pelos quais, entretanto, por uma tão considerável parte é entrelaçada e concatenada, no mútuo sofrimento, a paz e a alegria de um lar.
Não procureis em outros lugares a fonte de tais heroísmos. Nas dificuldades da vida familiar, como em todas as circunstâncias da vida humana, o heroísmo tem sua raiz essencial no sentimento profundo e dominador do dever, daquele dever, com o qual não é possível transigir ou pactuar, que deve prevalecer em tudo e sobre todos; sentimento do dever, que para o cristão é consciência e reconhecimento do domínio soberano de Deus sobre nós, de sua soberana autoridade, de sua soberana bondade; sentimento que quando se apresenta como a vontade de Deus claramente manifestada não é passível de discussão, e a todos impõe inclinar-se; sentimento que além de tudo nos faz compreender que a vontade divina é a voz de um infinito amor para conosco; sentimento, em uma palavra, não de um dever abstrato ou de uma lei prepotente e inexorável, hostil e esmagadora da liberdade humana, do dever e do agir, mas que corresponde e se inclina às exigências de um amor, de uma amizade infinitamente generosa, transcendente e que rege as multiformes vicissitudes do nosso viver aqui embaixo.

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